uma carta a mim mesmo, ficcionista
Há anos escrevo e há meses tenho ciência que já detenho um acervo de mais de mil páginas contendo contos, romances, ensaios, diários, ideias, rascunhos, resenhas, e frases soltas. Mas, o processo de produção desses textos e textos foram variados e indubitavelmente “à toa”. Gosto dessa expressão à toa, o que é o sentido da vida senão algo completamente à toa? Não só vivemos, como preenchemos isso que chamamos viver com coisas que escondem o à toa da vida, pois nada há razão. Todos os nossos planos mais altos e estratosféricos jamais alcançarão o universo ou impedirão a morte do planeta. Então acredito que todo escritor — aqueles que, no fim, viram escritores mesmo — passe por esse momento à toa, é quando escrevemos sem um propósito concreto, ainda que seja algo que desejamos publicar ou mostrar para o mundo. Não há o senso profissional da coisa toda. É isso que compreende essas mais de mil páginas em cadernos, notas soltas e em documentos na nuvem. Como se todo esse grande exercício me trouxesse até aqui, pois sinto é a vez que escrevo um livro de verdade, não só com um senso profissional o tempo todo mas o processo está sendo profissional também. Quando cogitaria viajar para terminar um romance sendo um amador ou um cara de um livrinho só? Agora é para valer.
Por isso quis fazer desta entrada sexta uma carta de intenção para Samba Fandango, tanto pública quanto para mim mesmo. Eu já escrevi algumas, mas quero que essa seja a oficial.
Eu quero que todo o meu Samba Fandango seja uma resposta a alguns livros anteriores. Eu os li e por mais que os admirei senti falta de algo muito importante: eu. Não me vi ali. Eu li Cidade de Deus e não me vi no meio daqueles machos, mesmo que fume maconha como eles, escute as músicas que escutam e tenha o mesmo ódio que eles. Li Jorge Amado e quase pude me ver em Pedro Archanjo, mas eu sou um autodidata que extrapola: não sou macho e ser macho é falta de lucidez ainda. Porque macho não é a mesma coisa que homem. Li Viva o povo brasileiro e mais uma vez, nada dos meus, nem unzinho. Li Capão Pecado e outra vez, senti que os meus não existiam, sabendo que eles existem: em qualquer mundo ficcional eles existem, mesmo que não-mencionados. Então li Via Ápia e novamente: macho, macho, macho. Não é que não goste, eu adoro um macho, mas em literatura não pude encontrar os meus nos romances ditos periféricos, decolonialistas, que seja.
Quando reli Cidade de Deus sei lá qual vez me vi escutando Ana Rubro Negra, me revoltando não só com o personagem que a despreza mas em como seu criador a viu, somente validando-a quando Ana foi macho (violenta). Eu escutei o silêncio de Ana Rubro Negra. O romance é dedicado à ela.
Intento que Samba Fandango seja, antes de qualquer coisa, um romance sobre papéis de gênero. O que é ser homem e o que é ser mulher? Qual a diferença da violência do homem para violência vinda da mulher? E a violência travesti? E a bicha que revida a homofobia na porrada? O que é ser homem ou mulher no meio do crime, contra o sistema, onde a violência é a imediata arma de linguagem?
Uma mulher, seja trans, seja cis, quando violenta, não é macho. Quando uma mulher é violenta é uma mulher. O que há de verdade é o poder. A violência emana de alguma medida de poder, nem que seja o poder sobre si que advém do desespero e da sobrevivência pura. O poder, na favela, na cúpula, no escritório, não é permitido a Mulher, portanto não é permitido a travesti, ao gay, ao homem bissexual, a mulher lésbica, ao queer que seja. Porque há dois espectros, territórios muito visíveis mas que, por vivermos dentro deles o tempo todo, acabam completamente translúcidos e até inerentes. Mas há o território do Macho (força, atividade, rivalidade, caça, pesquisa, interesse, estratégia, guerra, poder, domínio, razão, prioridade, mantimento, concretude, azul) e o território da Mulher (submissão, visceralidade, emoção, sujeição, cuidado, fraqueza, diminuição, rosa). Uma bicha favelada que se vista chavosa sem exagero, bem nos conformes, que fale gíria com voz “grossa”, que não usa pajubá, que possa ter seu namorado mas escondido: só assim. Porque uma bicha que mostre qualquer traço “feminino” mesmo que vestida da mesma maneira perde seu green card no mundo do macho de favela. Pisa no território da Mulher, não é permitido poder a ele.
Samba Fandango como um romance que insira essa cena no imaginário literário brasileiro.
Intento que Samba Fandango seja um romance sobre a arte. Com meu capítulo autoficcional e com minha torção de enredo (quando meus personagens criminosos decidem pegar toda a grana do crime e investir na arte da favela do Oroguendá) pretendo ater um testemunho ao romance, pois escrevo o livro em meio a insegurança financeira de alguém que decide investir alguns meses da vida na escrita morando em periferia. As cerca de 160 páginas que tenho escritas foram produzidas enquanto morava de favor. Em alguns dias conseguirei morar em uma casa só minha novamente, mas ainda assim produzirei páginas e páginas enquanto durmo em um colchão e me alimento sem uma geladeira. Rodeado de livros e papéis. Esta realidade, ou melhor, a realidade dessa instância é algo que quero deixar carimbado em alguns aspectos do romance, extrapolando quando alço isso a experiências de outros artistas periféricos. A Arte da Insistência. É quando fazemos do sentido de nossa vida a nossa arte, não por influência da família ou da titia escritora ou do pai historiador, mas como o modo em podemos sobreviver prazerosamente.
Intento que Samba Fandango seja um sumário de meu projeto literário. Revelo algo: ao fim dessa história o personagem não-nomeado, Andreas, se refugiará no Ilé Iyá Omi Dúdú por motivos que manterei guardado. E lá ficará por anos, talvez volte para São Paulo perto dos 40 anos. Por isso: arte e dinheiro, candomblé e raízes africanas, autoficção e identidade, papéis de gênero e sexualidade. Tudo o que respingará na minha obra ficcional da vida inteira. Afinal, tenho tudo planejado até um pouco mais que a metade desse século.
É primeiro romance, mas é prefácio.
Intento que Samba Fandango me possibilite exteriorizar a materialidade do autor. Entrarei em performance assim que este romance sair do prelo. Esteticamente, visualmente, em meu discurso e em toda minha aparição pública, tentarei mexer um pouco o jogo de linguagem.
Quando você, que me lê, pensa em um escritor ou uma escritora, o que vem na sua mente?
Não, não é imaginável o que eu vou fazer.
Intento que Samba Fandango me possibilite a ultrapassagem e que, então, eu possa ser sua capa.
Meu tributo à artista que me formou.
Andreas Chamorro nasceu em 1994. É escritor, editor e autodidata. Enquanto escritor, publicou as coletâneas de contos Divindades Solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Patuá, 2023). Tem textos publicados em antologias, como Zarpadas (Abarca Editorial, 2023) e em revistas digitais. Vive na zona sul de São Paulo.
Este texto é um daqueles capítulos que vamos ler- fumando, debatendo vozes e ouvindo David Bowie no seu futuro apartamento-, enquanto comentamos: lembra dessa época?
Penso que o escritor que não está confundindo sua realidade com sua literatura não entendeu ainda o que veio fazer aqui.
Quero muito esse seu livro S2.