c’est la mort
Matei meu pai algumas vezes. Em literatura, tudo o que escrevi quer matar o pai em alguma medida. Tudo o que escrevi carrega uma impossibilidade escondida ou até invisível. É o meu pai.
Escrevo para o meu pai saber que crio coisas que me dão orgulho e que possivelmente dariam orgulho a ele também.
O que não é verdade. Meu pai, infelizmente, faz concessões. Um vídeo no YouTube sobre taxação de grandes riquezas e ele acha que tomariam as casinhas herdadas pelos descendentes de operários.
Quando eu tinha catorze anos, inventei uma história. Escrevi que Ivo era um menino brasileiro que se mudou para Londres com a família adotiva. Não tinha pais. Tive uma infância de órfão. A mãe ausente de materialidade e o pai ausente de presença. Mãe morta que não aparece, pai vivo que não aparece.
Estou envelhecendo, não na ordem cronológica, mas por acúmulo. Já pensei muito sobre tudo e meio que repetidamente. E, aprendi a matar o pai, sempre que preciso. O meu, o mataria de tédio ou por empanturramento: o amarraria na cadeira e começaria a falar sem parar, todas as minhas reflexões e opiniões sobre o mundo, tudo o que eu sei, tudo o que pude saber, tudo o que penso saber, tudo o que acho que irei saber, até que ele enlouquecesse. Ou poderia dar um tiro de armamento pesado em sua cabeça, ter prazer em ver o crânio se explodir como a gelatina de morango do domingo. Carla e Stephanie não me interessam, não é morte do pai por rivalidade alguma. Posso também escrever memórias do ponto de vista de um outro cidadão, como quem olha o pai como só mais um homem no mundo, portanto o matando filialmente.
Acho que consegui. “Viagem nunca feita”, o capítulo autoficcional (comecei a repensar esse termo, ele é uma toalha curta para mesa grande) de Samba Fandango, está próximo do fim. Escrevi sem margem sobre minha vida, recolhendo, como um amanuense, o que faria sentido a mim e a história de mentira que quero contar, afinal ela vem de mim. O trabalho da semana será cortar, condensar, dispensar. As mais de cem páginas devem ser diminuídas para sessenta e tantas. Decidi que não quero que este capítulo chame muita atenção, quero que fique encaixadinho e, portanto, também decidi que a última frase da história de Samba Fandango estará ao fim desse capítulo. Percebi que, ao fim desse capítulo, o fantasma sai de cena.
Comemoro com quem qualquer que leia esta singela newsletter. Mas, voltando a falar do pai um pouquinho. Vale dizer que ele não é o centro de meu capítulo, muito menos de minha vida. Ele é apenas uma nuvem que sempre está no céu e me cobre vez ou outra, dia sim e dia não. Muito menos eu sou o centro desse capítulo de autoescrita. O centro deste capítulo são os meandros da vida que me levaram a Enseada do Ariwá, ou seja: cada frase.
Porém, é importante dizer que pude afastar um tanto meu pai com o que realizei artisticamente, o que é uma morte também. Estou longe de esgotar o que escreveria sobre ele, porém conquistei a audácia de deixar essa vontade para lá por enquanto.
autoetnologia
Annie Ernaux (ela novamente) escreveu que “gostaria de ser etnóloga” de si mesma. É uma boa luz. Um objeto central do estudo etnológico é a civilização e olhar com essa lente a própria a vida, como quem quer entender como se civilizou, que é o mesmo que dizer socializou, identificou, classificou, pode ser extremamente útil.
Quem eu deveria ser nessa cadeia toda? Me associo a ser português, espanhol ou africano? Quando sou tudo isso. Quantos humanos precederam meu avô na Espanha e minha avó em Portugal? E à minha avó paterna, por certo, o nariz negroide que eu e meu pai herdamos dela remete à África central. Porque o meu pai não me ajudou a me identificar, mal ele pôde se identificar com alguma coisa, foi adotado por uma família branca, é alteridade demais. Minha figura verdadeiramente paterna não é do meu sangue e é um migrante e não vejo há doze anos. Minha avó, era certo ser portuguesa, mas veio tão nova que não tinha sotaque, falava como personagem de novela. O que, disso tudo, me fez? E em qual medida?
Este olhar, o usei para olhar tudo, todos os últimos vinte nove anos e quatro meses, como que para enxergar a forma do animal que sou se visto por quem não sou.
Autoetnologia. Mas, sem perder o literário. A meu ver, na tal da autoficção, o literário, ou chamemos elemento mágico ou encanto, é aquilo que causará prazer no leitor, a famigerada vontade de ler mais — os bons escritores se preocupam com isso, vai —, não existe apenas porque o pacto ficcional nesse gênero se dá em outro lugar (a pressuposição é de que tudo aquilo é verdade) e o que invade o leitor não é jogo de trama senão a humanidade. O encanto do autoficcional só dura o tempo de vitalidade do corpo do autor. O encanto da autoficção se dá no leitor, nunca o autor ou autora o sentirá senão quando leitor de um texto autoficcional, por conviver consigo mesmo(a) a vida inteira.
O encanto da autoficção é a fofoca milionária inerente em cada ser humano. Através da fofoca, pudemos sobreviver ao ataque de um predador. É a fofoca uma de nossa melhores lanças. Ler ficção de um personagem de carne e osso é quase um privilégio; me deleita estar no XXI, às vezes. O porém é que o encanto da autoficção é encapsulado. Só dura até todo mundo morrer. Depois que todos os que hoje investem nesse gênero morrerem, terão, eles e seus personagens, corpos de personagens de romance, etéreos mas dignos. É aí, depois da morte dessa geração toda que, acredito, a autoficção (autoescrita, autoetnologia, automitologia, conficção, que seja o que intitular o Tempo) se tornará de fato um gênero.
Portanto digo que é ao encanto que me apego. É por ele que escrevi o que escrevi em “Viagem nunca feita”. Não tenho família, mas quem ler Samba Fandango poderá, sem dúvidas, afirmar que me conhece. Não está nada criptografado, está tudo muito claro. Posso ganhar uma família: meus leitores.
Andreas Chamorro nasceu em 1994. É escritor, editor e autodidata. Enquanto escritor, publicou as coletâneas de contos Divindades Solitárias (Editora Kotter, 2021) e A orgia perpétua ou o relatório de Pimenta (Editora Patuá, 2023). Tem textos publicados em antologias, como Zarpadas (Abarca Editorial, 2023) e em revistas digitais. Vive na zona sul de São Paulo.