Não escrevo sobre, escrevo sob. Meu tema é declarado, eu escrevo sob candomblé. Não é precisamente a representação o que me excita, talvez a incorporação seja o que eu mais procure. O romance Samba Fandango inaugura minha tentativa de incorporar o candomblé à literatura, de dentro da semente, a partir do núcleo.
O candomblé é peça faltante no mosaico literário, e quando o pescaram não o trataram bem, o transformaram em objeto de narrativa, capa de argumentação, contexto de ação, não houve notáveis obras que trataram o candomblé como sujeito e como motor de ação. Isso escapou aos olhos dos romancistas.
Divido minha vida em dois postos distintos, porém de equivalente importância, afinal sou escritor e também babalorixá. E um posto se integra ao outro quando observo o candomblé com olhos de escritor e observo a literatura com os olhos de um sacerdote, um em ação ao outro. Minha casa de candomblé se encontra em recesso, por isso pude me investigar enquanto um “pai de santo escritor” nos últimos anos, ainda que de forma inconsciente eu soubesse que, ao fim, não poderia fugir muito de incorporar as coisas, não sei quanto tempo sobreviveria escrevendo sobre civilidades, um romance curto escapou, mas a partir de Samba a forma ficou clara. Até antes de completar trinta anos eu enxergava o candomblé e a literatura como áreas isoladas da minha vida, coisas distintas, óleo e água, portanto não me sentia pai de santo ao ficcionalizar o candomblé em alguns contos, romances inacabados ou até no próprio Samba Fandango; me sentia um escritor que se apropria de um aspecto do real a fim de fazer uma ficção. Essa chave virou.
Em 2018 eu realizei minha última festa de candomblé. Era a saída de duas iaôs, a dofona Heloá de Ogum e a dofotinha Edi de Oyá. À época a sede da minha casa, o Ilê Axé Yá Jilê Omi, era em uma chácara extensa na Ilha do Bororé, extremo-sul de São Paulo. Havia um barracão, um quarto de santo, uma cozinha e meu quarto, mais nada, a casa fincava o auge do terreiro de Iemanjá, mas também lembrava que ainda era início, mesmo que aquelas fossem a sexta e a sétima iaôs da casa respectivamente. De filhos estavam o Gabriel de Oxum, ele iria tomar o posto de Babá Jibonã da casa naquela festa, a Ju de Omolu, a Andressa de Iemanjá, abiã ainda e a também abiã Gabi, ou Gabs, como eu costumava chamá-la. Porém, iriam aparecer outras duas filhas, a Flávia de Nanã, minha rumbona, e a Pricila de Iemanjá, iaô. Meu zelador à época, pai Eduardo, estaria lá, assim como seu pai, o respeitado Carlinhos de Odé, patrono do axé Cipó, um dos mais importantes de São Paulo, e também estariam alguns amigos, Henrique de Logunedé, equede Selma de Odé, Douglas de Airá e outros filhos do axé Barro Vermelho. Eu estaria à frente de tudo, tinha vinte e três anos, não lia nada com excessão de fundamentos de candomblé e não escrevia. Da manhã ao começo da tarde tudo ocorreu bem, meu marido Diego (ele tomaria o posto de Babá Kekerê da casa naquele dia) organizou o preparo da comida, alguns filhos ficaram com a decoração e eu fui cuidar da parte litúrgica, pela hora do almoço eu dei de comer a Exu, depois, perto do início da festa, dei de comer ao portão, do modo que aprendi no terreiro do Toninho, onde me iniciei. Começamos após recepcionarmos o pai Carlinhos e os membros da casa que o acompanharam, tomamos café, conversamos, eu conheci os ogãs – feliz, porque era a primeira vez que ogãs de verdade, sábios e velhos, tocariam na casa de Iemanjá. Uma avamunha, não longa, mas também não muito curta, se formou do lado de fora, e eles entraram, a Selma à frente, um marco, afinal ela havia me conhecido um iaô ainda. Eu estava no trono de Iemanjá, uma cadeira de braços que alçamos com a ajuda de uns caixotes de galinha que escondemos com o pano. Eu estava no auge. O restante ocorreu como em qualquer candomblé, após o xirê o santos vieram e foram levados ao quarto para que puséssemos as roupas, então entraram no barracão ao ritmo do batá, agô, agô lonã, Ogum, Logunedé, Oxum, Oyá, Iemanjá. Dei rum em todos com um sorriso esguio que se escondia atrás da seriedade, eu estava no auge, tudo tinha que sair perfeito. No fim, após comermos o ageum, nos separamos em panelinhas pela chácara – outro aspecto que me deixa feliz nessa lembrança, acredito que seja caro a um pai de santo ou mãe de santo ver seu terreiro formatado como uma comunidade–, os ogãs e o pai Carlinhos se juntaram no meu quarto, eu, Henrique e os outros amigos ficamos lá fora, tomando cerveja e rindo através da variedade de chistes que se pode ter um macumbeiro.
Duas semanas depois, eu iria até o quarto de santo e me ajoelharia perante Iemanjá. Eu pediria para fechar a casa. Eu fechei.
Essa exposição memorial foi para mostrar que realmente escrita e candomblé eram como vidas separadas para mim. Talvez por conta da covardia em ter abdicado do sacerdócio eu tenha me acostumado a empurrar o cargo para trás e pensar apenas no mitológico, no cultural, melhor dizendo, na hora de escrever, essa fundição, escritor pai de santo ou o contrário, era impossível. Porém, é, e não apenas, também é necessária.
Eu retornei para a literatura no fim de 2018, rabiscando uma história de ficção científica apenas (percebo, agora) para me reaquecer, lembrar o que era estrutura narrativa, enredo, personagem, primeira, segunda, terceira pessoa. Não demorou e a experiência recente do candomblé (sete anos) mostrou-se como matéria prima imediata, como quando somos jovens e inexperientes escritores e ao escrever os primeiros textos acabamos escrevendo sobre a própria vida, é o que está à mão e no meu caso isso era o sacerdócio e toda uma vida de noviço, obrigações que tomei em mais de um terreiro, mais velhos e mais novos que conheci, os catiços, que também são importantes, em suma, um arsenal riquíssimo que ainda se abriga aqui dentro. Rabisquei algumas coisas, inclusive um conto de terror que acabou no meu primeiro livro, Divindades Solitárias (2021). Porém, não demorou e quis verificar quem já tinha escrito sobre o candomblé em nossa literatura e, honestamente, me supreendi ao perceber o vazio imenso que há. Desde o capítulo “Macumba” em Macunaína a alguns dos romances de Jorge Amado, o candomblé apareceu como descrito no início deste texto, como um objeto, um aspecto da cultura brasileira, algo sempre acoplado, sempre integrado e nunca visto, registrado e explorado como único, como um corpo isolado. Foi uma brecha que encontrei e ao mesmo tempo que me encantou, me entristeceu e me assustou. Eu encontrei a brecha ao buscar referências, como os escritores haviam feito antes de mim, assim eu poderia sofisticar, avançar um pouco, que fosse, mas não achei nada. Existe apenas um livro, um romance, que me antecede e que fez o que acredito ser o ideal, trata-se de Macumba de Rodrigo Santos, contudo, Rodrigo é meu contemporâneo, um romance apenas não é suficiente para consolidar uma ficção de aspecto candomblecista e o modo que ele explora o candomblé no livro é fácil de ser avançado.
Me sinto abençoado de poder por em prática, enfim, o projeto que carrego desde 2019, sendo que apenas agora ele pôde ser intitulado, porque apenas agora pude encontrar a forma. Eu precisava voltar ao candomblé antes. Não, não reabri minha casa – apesar que tendo a pensar que ela nunca fechou –, mas voltei a ter uma rotina religiosa, ando fazendo algumas coisas, cuidando do que deve ser cuidado, e isso amadureceu meu projeto em um tempo recorde. Antes eu tinha vontade de escrever sobre outras coisas também, feito fossem registros separados, porém agora é mais do que certo: me dedicarei a escrever sob candomblé. É desse objetivo que é feito o projeto Mariô, todo e qualquer texto, especialmente ficcional porém não posso fugir de alguns ensaios no meio disso, que estiver sob o candomblé pertence a esse projeto. Samba Fandango já foi, é o primeiro, agora preparo outra coisa, algo antigo, que está comigo desde 2019. Escrevi um samba, agora quero escrever sobre a escola de samba.