Entrada 12: Romance terminado, porém, qual o resumo?
A literatura não tem o dever de ser política, mas nosso momento histórico tem e a ele a literatura é essencial. Somos todos nós membros de uma espécie que funciona à base de linguagem e os escritos e a comunicação é o molde dessa linguagem, tornando os escritores de qualquer gênero agentes de poder nessa realidade política.
Terminei o romance Samba Fandango e o aspecto que mais ficou evidente no texto final é o político. E neste político me refiro à mensagem. Me agrada, no momento de fazer literatura, me preocupar com a forma, com a técnica e as camadas de composição de um texto, pontos tão importantes quanto a mensagem, afinal não há mensagem recebida se a forma não for bem trabalhada. Contudo, neste caso, usei do esforço para que a forma e a técnica impulsionasse a mensagem. Escrevi um romance que circula a figura de uma travesti e a forma que encontrei para que tal figura não fosse nem vitimada e nem fetichizada foi através do foco narrativo. O texto final de Samba resume-se a uma narrativa composta de depoimentos que, vindos de direções diferentes vão a um mesmo ponto: Titânia. Durante o período em que foi viva, essa travesti foi uma personagem conhecida na favela do Oroguendá, de maneira que um número de pessoas acabara convivendo com ela. Se fosse pedido a essas pessoas que reconstruíssem a figura através da fala, cada um dele teria uma Titânia diferente, isso causa uma espécie de efeito “cubo mágico", onde variados lados trazem uma curiosidade e uma sensação de enigma. O leitor, que também não tem o dever de ser político, dessa maneira, não escapa de se interessar, sem os preconceitos e esteriótipos, por uma figura trans apenas por sua história, simplesmente.
Ao longo de seu histórico, a própria forma do romance tendeu a ressaltar uma ação política, como no caso dos trabalho de Orwell, Zamiátin, Huxley, dentre outros, culminando em um gênero muito conhecido hoje que é a é a distopia, por exemplo. Portanto, não estranho a tendência que me levou a essa característica neste trabalho especificamente, Samba Fandango se encontra em uma fase (ou em uma parte) da minha obra que se debruça sobre uma questão que é indubitavelmente política: identidade. Eu carrego uma dúvida complexa de quem compõe e quem rodeia e rodeou minha família paterna. Essa nostalgia de um Nordeste que corre pelos meus músculos que fez com que eu criasse Enseada do Ariwá, cenário deste e de outras histórias.
O texto que entreguei a meu editor é composto de alguns narradores, todos LGBT, além da personagem que recolhe essas histórias sobre Titânia, que é uma mulher trans. O que quis dizer com esse recurso é que nos, as consideradas minorias, é que devemos nos discutir, à parte divergência e contrapontos, algo que é praxe em uma discussão ou dialética, que seja. Tal que mencionei a algumas pessoas que, por um tempo, achei que eu desejava escrever sobre classe, até o momento que notei que, na verdade, eu estava escrevendo sobre a Titânia. A personagem escapa o estereótipo, não escrevi sobre as manas travestis, escrevi sobre a Titânia.
Outro aspecto que me saltou aos olhos assim que pude observar este trabalho finalizado é a questão do crédito. Construir uma personagem que evade a linguagem de gênero implica em um exagero, uma travesti não será respeitada se não ser extremamente violenta, assim como não será aceita se não soar e parecer perfeitamente com uma mulher cia, dentre outros descréditos que movem uma pessoa trans ao extremo. Em termos narrativos, uma construção como essa implica em uma intimidade e Titânia acabou se tornando a personagem na qual eu mais me apeguei nos últimos anos. Como sua história de primeira surgiu a mim como uma resposta à história de Ana Rubro Negra em Cidade de Deus, a ideia do descrédito ja era algo importante sem que eu tivesse necessariamente percebido, mas assim que percebi eu obtive o arremate do livro. Você, que está lendo até aqui, acreditaria na história de uma travesti chefe de quadrilha?
Claramente o texto ainda passara por ajustes, não apenas porque ele ainda á esta fase das leituras críticas e leituras beta, mas também por sua forma, Colocar narradores-personagem para contar uma história longínqua cai facilmente no monólogo e até em um possível fluxo de consciência; cabe ao escritor tecer esse tapete bem para que não escape fiapos que ficarão soltos. Contudo, uma vez que eu detinha a forma e a mensagem final, ou melhor, a certeza do que era esse livro, fui acometido por uma tranquilidade ao submeter o texto a leituras mesmo sabendo que alguns ajustes teriam que ser feitos, porque eu preciso saber se a mensagem foi passada e que a história da Titânia foi contemplada.
Portanto, uma alegria ansiosa me toma nessa segunda metade da jornada, afinal ainda há uma trajetória até o fim desse Cerco ao Arranjo, mas já me satisfaz saber que tenho um caminho registrado nessas entradas, nesse diário de composição